sexta-feira, 25 de abril de 2008

1888, SANGUE NEGRO, VISA, SHOPPING VITÓRIA

1888, SANGUE NEGRO, VISA, SHOPPING VITÓRIA

Era noite de sábado, dia 19 de abril de 2008, eu e minha esposa decidimos ir ao Shopping Vitória comprar uma geladeira nova. Durante o dia, havíamos lido algumas ofertas do produto desejado num anúncio de uma grande loja de eletrodomésticos. Depois de escolher a geladeira que queríamos por um preço cômodo de R$ 1888,00, fomos ver se havia algum filme em cartaz digno de se assistir. O único filme assistível era “Sangue negro”, porém já conhecíamos o enredo e desistimos do cinema. Compramos pipoca com manteiga ali na entrada dos novos cinemas. Diga-se de passagem, a pipoca do cinema é uma delícia. Se não tiver filme que presta, vale a pena a pipoca do Cinemark. Foi quando me lembrei de que o Cartão Visa e o Shopping Vitória estavam fazendo uma promoção de sorteio de um carro da Citroen e, a cada R$ 100,00 em compras dava direito a um cupom para concorrer ao cobiçado automóvel.
Esse foi o início da nossa chateação. Dirigimo-nos ao local onde se trocava a nota fiscal pelo cupom de sorteio e fomos muito mal recebidos pela atendente do Cartão Visa. A priori a atendente do VISA não acreditou que nós tivéssemos feito uma compra de R$ 1888,00, por isso não tínhamos direito aos 18 cupons da promoção. Mostrei o valor da compra e perguntei se, dividindo R$ 1888,00 por R$ 100,00, não daria 18. Ela teimou que eu não teria direito aos 18 cupons. Minha esposa interferiu e foi tratada com escárnio pela atendente do VISA. A jovem, uma mulher de pele bem branca, olhos azuis e cabelos loiros pintados de preto, disse que, se quiséssemos, poderíamos pegar um cupom por mês para concorrer ao carro. Ora, o sorteio acontece na segunda semana de maio. Tentei agir com bom humor e retruquei dizendo que realmente eu não tinha o sangue azul como os olhos da atendente do VISA e talvez não tivesse dinheiro para comprar a aquela geladeira cara. Por outro lado, minha formação intelectual era apenas de Mestre pela Universidade Federal do Espírito Santo, e um mestre de título que se preze não tem poder aquisitivo tão alto assim.
Para piorar a situação, uma senhora, com seus 60 anos, que se encontrava ao lado murmurou alguma coisa no ouvido da outra atendente do VISA. As duas olharam para mim e riram. Tanto a senhora ao lado quanto a outra atendente do VISA eram loiras. Nesse momento não tolerei tanto descaso e blasfemei contra o poderio da administradora de cartões VISA. Indaguei à senhora ao lado qual era a razão que a levava a opinar sobre algo que não lhe dizia respeito. O circo se armou para o espetáculo, pois a atendente do VISA, que nos tratara tão mal, bateu com violência sobre a mesa de atendimento e gritou: “Segurança! Segurança!”.
Vários seguranças vieram atender ao chamado apreensivo da atendente do VISA uma vez que, pelo tamanho alarde, alguma coisa muito grave havia acontecido. Diante dessa confusão toda, não teve como impedir que o meu “sangue negro” fervesse. O supervisor de segurança do Shopping Vitória foi recebido mal também pela atendente do VISA que mandou resolvermos o problema longe do balcão de atendimento. Minha esposa se sentiu enxotada e brigou por um atendimento digno de quem tem poder de consumo além dos R$ 7000,00. Eu acreditei que acabáramos de ser alvos de dois preconceitos: social e racial. Inclusive a prática de um desses preconceitos é crime inafiançável. Senti-me no direito e na obrigação de esclarecer os fatos. Um tumulto se formou no Shopping Vitória. As pessoas me olhavam com cara de condenação sem ao menos saber o que havia acontecido. Uma outra senhora de meia idade que acompanhava a senhora loira junto ao balcão disse ao segurança: “Ele agrediu ela”. Eu, agora com excesso de sarcasmo, interpelei a nova senhora que aparecia na história e disse que, se ela queria me olhar com desprezo, pelo menos usasse o português correto: “Ele a agrediu” e não “Ele agrediu ela”. Afinal poder econômico significa conhecimento da língua padrão?
Chamei para a peleja o gerente da loja onde havíamos comprado a geladeira de R$ 1888,00, afinal eu não havia comprado apenas R$ 100,00 como teimava em insistir a atendente do VISA e, mesmo que fosse apenas aquele valor, eu merecia um mínimo de respeito por parte da administradora de cartões VISA com os quase 20 anos que tenho de cliente. Independente da minha cor ou da minha classe social. O gerente da loja não obteve uma resposta, O VISA não me deu uma satisfação, o Shopping Vitória não se pronunciou sobre o caso.
Racismo? Não! O Brasil não é um país racista. O que acontece nas ruas das nossas cidades, em shoppings, no comércio em geral, quando um negro é maltratado, é puro sinal da mais absurda ignorância de se julgar os bens que a pessoa tem por sua aparência. Isso é preconceito social. Nós, negros, apenas fazemos parte da grande maioria em desvantagem social nesse país de ascensão econômica e educacional. Todavia me lembrei daquele poema que escrevi há 18 anos atrás: “Os feios”. Acho que eu era o feio do poema. Que coisa enigmática é a arte. Eu nunca pensei que pudesse acontecer justo comigo o que escrevi há quase duas décadas. E pensar que desde 1888 o Brasil precisa mudar a sua forma de ver a população negra deste país.

(BELLMOND, David. Elogio à perversidade. Vitória: Editora do autor, 2009.)

OS FEIOS

Eram o feio e a feia
Na entrada de um shopping Center
Com seus belíssimos
Cartões de crédito
E seus charmosíssimos
Talões de cheque
E seus caríssimos mantos reais,
Arrancando saudações sorridentes
Dos vendedores e gerentes,
Roubando olhares amistosos
Dos banqueiros gananciosos.

Plástica pra quê
Se dinheiro traz beleza e poder
Quando o feio ama a feia
E a feia ama o feio?

No entanto o feio sai cedo de casa
Em trajes domésticos e comuns
Para comprar o jornal da manhã
Sem cartões de crédito
Sem cheques coloridos
E a polícia o prende
Confundindo-o com algum bandido.

A feia apavorada
Não chama o advogado
E ao tentar inocentar o feio
É presa por atentado ao pudor.


(BELLMOND, David. Vida Vide Verso. Vitória: Editora do autor, 1999.)

Um comentário:

KamilaB disse...

Sinceramente, acho que boa parte dos negros tem mania de perseguição. Toda confusão é motivo para pensar/dizer "só pq eu sou negro!"
Pura paranóia sua, desculpe ser verdadeira, mas acho o cúmulo colocar a culpa na sua cor.
E se você fosse branco e isso acontecesse? Seria preconceito racial também?
Esqueça essas diferenças... somos iguais aos outros!