quarta-feira, 23 de julho de 2008

NOMES (4)


NEID

Meu nome não
É nenhum doce
Mas dá prazer
Ouvi-lo sempre
Como se fosse

Você cantando
Uma canção
Que fez sem som
De violão.

Como seu nome
Singela Neid
Como seu nome
Mas me dá sede
E sinto frio

Seu nome é rio
E eu não seu nadar
E eu não sei nada

Eu só sei voar
Mas vôo alto
E não consigo
Sair do lugar.


(GIACOMO, Juan. As minhas faces secretas. Vitória, Editora do autor: 2007.)
P.S.: Juan Giacomo é o pseudõnimo de Homero Linhares, um aluno meu do ensino médio há 11 anos, quando eu iniciava a carreira no magistério. Criativo, ele misturou um nome italiano (Giacomo Casanova) e um nome espanhol (Don Juan), ambos mestres na arte de amar. Este poeta me lembra os heterônimos de Fernando Pessoa, algo similar ao Alberto Rodrigues do poema abaixo.

METAPOESIA


Poeta

Sou barroco na dualidade.
Como sou também
do pau-brasil
de Oswald de Andrade.

Tenho as várias faces
de Gregório de Mattos,
porém, sou um Gonzaga,
mestre dos arcades.

Talvez até um
ultra-romântico azedo,
como um tal,
Álvares de Azevedo.

Ou quem sabe
um realista,
ou vai saber,
um modernista.

(apostam alguns
em naturalista)
Assim como
Adolfo Caminha.

Eu também caminho
nos sons e sentidos
e que como eu,
ninguém ousa ser
Augusto dos Anjos
ou Cruz e Sousa.

Detenho em mim
o Tropicalismo,
sendo um marginal
de marca maior
no meu contemporâneo
pós-modernismo.

Em verdade
na verdade
de verdade.
Não sou Oswald
Drummond
ou Máriode Andrade.

Sou poeta.
Do passado, presente, futuro
simples profeta.

(Alberto Rodrigues)


P.S.: Alberto Rodrigues é o pseudônimo de Lucian Rodrigues, ex-aluno meu no ensino médio. Acho que preciso reciclar minhas idéias ou essa turma me ultrapassa!
Confira outros poemas desse grande poeta em

segunda-feira, 21 de julho de 2008

PROFESSORAS E PROSTITUTAS


PROFESSORAS E PROSTITUTAS


O jornal “A Tribuna”, da capital do Espírito Santo, publicou algumas “informações” preocupantes na matéria principal do dia 12 de junho. Eis alguns dos “dados publicados” que tanto me incomodaram:


● A relação entre duas profissões exercidas principalmente por mulheres: garotas de programa e professoras.
● Uma estatística de que há 10 universitárias, 04 professoras, e três pedagogas atuam como garotas de programa na Grande Vitória.
● Uma entrevista com uma garota de programa que mora na Praia do Canto e afirma ser estudante universitária e já ter sido professora.
● Uma garota de programa ganha uma média de R$ 4000,00 por mês e uma professora ganha R$ 1100 pelo mesmo período trabalhado.
● A defesa de um representante do SINDIUPES, que defende a luta pela valorização do magistério a fim de que outras professoras não migrem para a prostituição.



Algumas considerações precisam ser feitas:



1. Como o próprio delegado e a garota de programa entrevistados já deixaram claro, prostituição não é crime. Crime é acreditar que o profissional de educação possa melhorar as estatísticas acerca de analfabetismo e educação precária no nosso país sem que seja valorizado por tão importante trabalho. Ser professora ou ser prostituta não é ilegal. Mesmo que uma não tenha se conformado com a situação de miséria, subordinação familiar e tenha ingressado na prostituição e a outra não se conforme com a idêntica situação de miséria, descaso, desmandos e autoritarismo na educação e lute contra isso todo dia. É incrível como que qualquer profissional de outras áreas se acha no direito de opinar sobre a mal remunerada atividade do magistério. Nenhum padeiro aceita que um professor vá à sua área de trabalho para que se dê sugestão sobre a medida de fermento a ser usado na produção do pão. Entretanto, todo mundo que tem diploma ou não, assalariado ou não, se acha no direito de escarnecer a profissão de educador ou de entrar numa sala de aula. O ex-presidente FHC disse certa vez que “todo mundo que não sabe fazer nada vira professor”. Pode ser que isso explique a sua escolha pelo magistério. Içami Tiba, psicólogo de renome, diagnosticou que os problemas de violência e educação ruim no Brasil é culpa dos próprios professores. O próprio jornal, autor da matéria, publica cotidianamente notas e reportagens especiais que me fazem ver a labuta de professor como uma atividade mais bélica que a de um traficante.


2. O magistério poderia se calar diante da atitude inconseqüente de “A Tribuna” para não macular a imagem das garotas de programa da Grande Vitória, uma vez que elas também não estão satisfeitas com suas condições de trabalho apesar do alto rendimento conquistado no mês à custa dos seus 10 programas diários com clientes dispostos a pagar por uma hora ou mais de prazer. Enquanto isso, as professoras que “ainda não se prostituíram” lutam para que seus alunos não aumentem a concorrência nos prostíbulos da Grande Vitória ou no tráfico. O meu aluno que trabalha no tráfico ganha mais que eu – Graduado em Língua Portuguesa, Pós-Graduado em Lingüística, Mestre em Literatura – todavia o meu respeito por ele, como aluno e cidadão, não me permite comparar nossas atividades e nossas remunerações, pois tem sido meu afã convencê-lo de que a educação pode mudar a sua realidade. Nem sempre uma atividade bem remunerada significa uma realidade da qual o cidadão possa se orgulhar e dizer em alto e bom som à luz do dia sem correr risco de ser apedrejado, criticado ou preso.



3. Um vereador, um deputado, ou outro ocupante de cargo eletivo qualquer, pode se orgulhar por toda sua vida do grande bem que fez à humanidade? O que conta é o que se ganha? Se é assim, Fernandinho (Não os dois ex-presidentes) tem mais dignidade que eu e pode se orgulhar do que faz. No entanto, eu posso assumir minha profissão na praça que, apesar das zombarias de jornais, secretárias de educação e administradores em voga, não serei perseguido pela justiça, pela Receita Federal, pela Inquisição ou qualquer outro órgão de opressão legalizado.



4. Sepulcros caiados é a expressão usada pelo Mestre dos mestres para se referir aos fariseus do início do milênio passado que insistiam em encontrar falhas na propagação das boas-novas divulgadas por Jesus. O mesmo jornal que publica matéria criticando a prostituição tem uma página diária de prostituição nos seus classificados. O senhor delegado poderia iniciar seu trabalho de inteligência observando os serviços prestados pelo jornal aos clientes das “ex-professoras”, agora garotas de programas. Ou será que vale a máxima: “Faça o que mando e não faça o que faço”?



5. Sepulcros caiados. Outro dia o mesmo jornal publicou uma matéria narrando a agressão que uma aluna de escola pública sofrera de seu professor. O título vinha em primeiro plano e era a primeira matéria do jornal. Dias depois, o jornal publicava uma nota mínima num canto qualquer do jornal sobre uma manifestação de estudantes em defesa do professor acusado de agressão.


6. Desconheço qual seja a real intenção do jornal ao relacionar as duas profissões e que estatística permite as conclusões publicadas pelo tablóide. Talvez seja uma forma de contribuição à nossa educação já tão degradada. Ou será que os jornalistas medíocres têm trauma daquilo que representou para eles a sala de aula um dia? Talvez isso justifique a língua portuguesa tão maltratada por nossos autores de matérias repletas de problemas de concordância, ortografia e regência.
(BELLMOND, David. Elogio à perversidade. Vitória, Editora do autor, 2009.)

ACRÓSTICO


Depois do começo
A dança
Vinte e nove
Índios
Dado viciado

Baader meinhof blues
Esperando por mim
Love song
Longe do meu lado
Maurício
O reggae
Natália
Daniel na cova dos leões

A TERCEIRA MARGEM DO RIO


A Terceira Margem do Rio


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.


Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.


Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.


Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.


Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.


No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.


Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.


A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.


Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.


Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.


Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.


Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.


Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.


Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.


Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.


Guimarães Rosa


(Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendo.)

CARTA A UM JOVEM POETA

Carta a um jovem poeta
(Paris, 17 de fevereiro de 1903 )
Meu estimado senhor:
Recebi sua carta há poucos dias. Quero lhe agradecer a grande e amável confiança que esta representa. Mas pouco mais posso fazer. Não examinarei os seus versos, pois sempre fui alheio a qualquer intenção crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada pior do que as palavras da crítica, que somente levam a mal-entendidos mais ou menos infelizes. Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou. E nada mais difícil de definir do que as obras de arte - seres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera.
Após isso, apenas acrescento que os seus versos não revelam uma maneira própria. Possuem, é certo, sinais de personalidade, porém ainda tímidos e ocultos. Senti-o no seu último poema, "Minha Alma". Neste, qualquer coisa peculiar procura achar solução e forma. E em toda a formosa poesia "A Leopardi" se sente uma espécie afinidade com este príncipe, este solitário. Entretanto, as suas poesias não têm existência própria, nem mesmo a última, nem mesmo a que é dedicada a Leopardi. Na sua missiva encontrei a explicação de certas insuficiências que, ao lê-lo, já havia percebido, mas a que não me foi possível dar nome. Indaga-me se os seus versos são bons. Pergunta a mim, depois de Ter perguntado a várias pessoas. Manda-os para as revistas, compara-os a outros versos e alarma se quando certos jornais repelem os sus ensaios poéticos. Doravante (já que me permite aconselhá-lo) peço-lhe que renuncie a tudo isso. O seu olhar está voltado para o exterior. Eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode dar-lhe conselhos nem ajudá-lo - ninguém! Só existe um caminho: penetre em si mesmo e procure a necessidade que o faz escrever. Observe se esta necessidade tem raízes nas profundezas do seu coração. Confesse à sua alma: "Morreria, se não me fosse permitido escrever?" Isso, principalmente. Na hora mais tranqüila da noite, faça a si esta pergunta: Sou de fato obrigado a escrever?"Examine-se a fundo, até achar a mais profunda resposta. Se ela for afirmativa, se puder fazer face a tão grave interrogação com um forte e simples "Sou", então construa a sua vida em harmonia com essa necessidade. A sua existência, mesmo na hora mais indiferente e vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Aproxime-se então da natureza. Depois procure como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite, de início, os temas demasiado comuns: são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, às vezes brilhantes, se mostram em grande número, o poeta só pode realizar obra pessoal na plena maturidade de sua força. Fuja dos grandes assuntos e aproveite aqueles que o dia-a-dia lhe oferece. Fale de suas tristezas e dos seus desejos, dos pensamentos que o tocam, da sua fé na beleza. Diga tudo com sinceridade calma e humildade. Utilize, para se exprimir, os objetos que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, as suas lembranças. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há lugares mesquinhos e indiferentes. Mesmo num cárcere cujas paredes abafassem todos os ruídos do universo, não lhe ficaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa esplêndida riqueza, esse tesouro de recordações? Volte, para esta direção, o seu espírito. Procure fazer regressar à superfície as impressões submersas desse longínquo passado. A sua personalidade fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma espécie de moradia fechada aos sons exteriores. E se lhe vierem versos deste regresso a si próprio, deste mergulho no seu cosmo, não pensará em indagar se são bons ou não, não tentará conseguir que periódicos se interessem pelos seus trabalhos, porque desfrutará deles como de uma posse natural, como de uma de suas formas de vida e expressão. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. Por isso, meu prezado senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades de onde jorra a sua vida. Só desta maneia encontrará resposta à pergunta: "Devo criar?" De tal resposta recolha o som, sem desvirtuar o sentido. Talvez chegue à conclusão de que a Arte o chama. Neste caso, aceite o seu destino e siga-o, com o seu peso e a sua majestade, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir de fora. O criador deve ser um mundo para si próprio, tudo encontrar em si e nesse pedaço de natureza com que se identificou. Pode suceder que, depois dessa descida em si mesmo, ao âmago solitário de sim mesmo, tenha de renunciar a ser poeta. (Basta, no meu entender, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo.) Mesmo assim, a introspecção que lhe peço não terá sido inútil. A sua vida, desde aí, encontrará caminhos próprios. Que estes sejam bons, ricos e largos, é que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que poderei acrescentar? Acredito ter abordado o essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a progredir segundo a sua lei, de modo grave e sereno. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente "para fora", do que esperando "de que fora" as respostas que apenas o seu sentimento mais secreto, na hora mais silenciosa, poderá talvez proporcionar-lhe.
Gostei de encontrar na sua carta o nome do professor Horacek. Dediquei a esse sábio uma grande estima e uma gratidão que já duram anos. Quer transmitir-lhe isso da minha parte? É bondade dele, que muito aprecio, lembrar-se ainda de mim.
Restituo-lhe os versos que me confiou tão amigavelmente e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.
Procurei, nesta reposta sincera, feia o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, na minha qualidade de estranho.
Com toda a dedicação e toda a simpatia.
Rainer Maria Rilke
Poeta alemão / 1875 - 1926

TROPA DE ELITE - RESENHA

Resenha: é um texto que tem por função descrever algo e apresentar o ponto de vista do resenhador a respeitado do objeto descrito. A descrição feita pode ser de um filme, uma música, um livro, um texto, uma peça de teatro, um quadro ou uma obra de arte de maneira geral. É preciso que apareça na resenha o título do objeto resenhado, o autor, algumas informações sobre o autor ou sobre o objeto e, por fim, a análise que o resenhador faz sobre tal objeto. Eis um exemplo de resenha em que o objeto resenhado é o filme “Tropa de elite”, do diretor José Padilha.


Trapos da Elite


O filme “Tropa de elite”, do diretor José Padilha, conta a história da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Com atuação brilhante de Wagner Moura, o filme mostra uma polícia dividida entre a corrupção e o trabalho apaixonado pela profissão. Na narração do tenente Nascimento, personagem de Wagner Moura, a narrativa descreve o tráfico de drogas da cidade maravilhosa e a ação da polícia no combate ao crime ou corrompendo-se diante de uma sociedade cheia de trapos e sujeira empurrada para baixo do tapete.
Quase todo espectador que vê o desenrolar da história não consegue desviar a atenção, pois “Tropa de elite” não é só um roteiro de pancadaria. Mais que uma narrativa ao estilo policial de Van Damme ou Stallone, o filme mostra uma visão ousada da instituição que deveria nos proteger e nem sempre o faz. Eis a razão que levou os altos oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro a moverem vários processos judiciais contra a obra de ficção antes mesmo da sua exibição diante do grande público.
Fugindo à regra dos costumeiros filmes do gênero, o trabalho de José Padilha apresenta vários temas, dentre os quais estão: o jovem de classe média que trafica dentro da universidade ou faculdade enquanto que pratica sua boa ação junto a alguma ONG; a discussão teórica e ingênua acerca da violência nos meios intelectuais, o serviço prestado por uma banda podre da polícia, que cobra pessoalmente seus serviços prestados a comerciantes; a ideologia - forjada a ferro e humilhação - daqueles policiais militares que não se rendem ao charme da marginalidade e não facilitam a vida nem mesmo de policiais corruptos.
“Tropa de elite” futuca a onça com vara curta, mexe na ferida do nosso aleijão brasileiro, ou ainda, como diria o poeta irreverente baiano: para a tropa do trapo vaza a tripa. Eis a grande elite incomodada: uma parte corrompida da sociedade que quer aparentar sempre justiça, força e poder.

(David Batista – Mestre em Estudos Literários pela UFES)

DURA LEX SED LEX? SÓ NA FICÇÃO!





DURA LEX SED LEX? SÓ NA FICÇÃO!


Há alguns dias, meu filho de oito anos me perguntou o que era “pena de morte”. Fiquei receoso de falar sobre o assunto a um aprendiz tão púbere, todavia era um trabalho escolar e eu precisava ajudá-lo. Ao mesmo tempo, receei negar-lhe a discussão, pois já houve quem dissesse que “O mundo está prestes a ensinar o que os pais não ensinam”. E o mundo nem sempre ensina de forma pedagógica. Aproveitei o mote para construir a glosa.
Nas minhas palavras, a “pena de morte” é o castigo máximo que alguém poderia receber por algum erro. Expliquei-lhe que, em certos lugares do mundo considerados civilizados, mata-se ou se aprisiona o indivíduo pelo resto da vida, dependendo do crime cometido. O garoto apreendeu tão bem a lição que me questionou por que é que tais sentenças não existem no Brasil. Se fosse assim, o número de crimes diminuiria – opinou o menino. Concordei com ele em um terço e discordei na maior parte.
Disse-lhe que eu era favorável a essas penas em casos de seqüestro, estupro e latrocínio. Defini o que era latrocínio: assalto seguido de morte. Porém defendi que a história do povo brasileiro ainda não permite punições tão severas uma vez que a polícia e a justiça não estão preparadas para prender, julgar e condenar sem o ranço de preconceito e protecionismo que aqui existe. Instrui-lhe que a “pena de morte” e a “prisão perpétua” podem ser aplicadas apenas aos três P do povo: pretos, pobres e prostitutas. Corremos o risco de embranquecer, enriquecer e moralizar demais nossa população sem que exista verdadeiramente justiça.

Dura lex sed lex (Dura é a lei, mas é a lei).
Todos são iguais perante a lei.
Ninguém é culpado até que se prove o contrário.
A justiça é cega, surda e muda.

Certos provérbios falsos da justiça brasileira só são válidos para quem tem dinheiro e, conseqüentemente, bons advogados, ou para quem faz a manutenção da lei e da ordem. Os jornais nos provam constantemente que lei e justiça não funcionam de maneira imparcial aos bem-nascidos, aos excluídos, e mantenedores da “verdade”. Depois daqueles casos de chacinas na Candelária (no Rio de Janeiro), no Carandiru (em São Paulo), e no Carajás (no Pará), em que a punição é duvidosa, têm sido comuns os casos de crimes cometidos pela polícia. No Brasil, está virando moda militares serem autores de homicídios contra inocentes. Meus amigos, parentes e desconhecidos militares que realmente levam a sério o trabalho de guardiões da ordem me perdoem a dureza do meu discurso. Entretanto não é mais possível calar a voz desse povo ameaçado por quem deveria lhe proteger.




Ano passado, um coronel da PM-ES disse em entrevista a um jornal capixaba que todo crime cometido contra policial militar deveria ser investigado e punido três vezes mais que aquele praticado contra o cidadão comum para que isso sirva de exemplo. A punição dada aos militares criminosos também não deveria seguir o mesmo preceito? Que se condene três vezes mais os servidores públicos armados que aumentam a fileira de meliantes e assustam a nós, cidadãos comuns, quando deveriam nos dar tranqüilidade e segurança por tê-los por perto. Dizem por aí que quem não deve não teme. Outro provérbio falso. Pago meus tributos e minhas contas rigorosamente em dia, contudo tremo e temo quando vejo um carro de polícia porque nunca sei quem me abordará: o policial militar, o policial federal, o policial civil, o guarda municipal decente ou o bandido vestido de mocinho. Conforme cantava o Chico nos anos de chumbo, é preciso chamar o ladrão porque a polícia nos dá pavor.
Desde a aprovação da “Lei seca”, tenho lido nos jornais casos de pessoas que não se enquadram na mesma situação de cumprimento da lei em que os praticantes comuns de direção e álcool são enquadrados. Já vi caso de policial federal que não aceitou se submeter ao teste do bafômetro mesmo apresentando sinais de embriaguez e nada lhe aconteceu. Já vi caso de policial militar que causou acidente em cerco da polícia e não aceitou tratamento igual àquele dado às pessoas comuns. E todos esses casos contaram com a conivência e proteção corporativista dos comandos militares.
Cidadãos comuns somos nós, meu filho, que não vestimos farda, não temos dinheiro guardado, não temos nomes em colunas sociais nem temos posse da espada e da balança que representam a justiça. “Dura lex sed lex” só na ficção. “Pena de morte” e “prisão perpétua” ainda estão distantes da nossa realidade porque podemos pagar pelo que não devemos.








(BELLMOND, David. Elogio à perversidade. Vitória, Editora do autor, 2009.)